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Jovem Cientista | “Tudo vai se realizar”: aos 23, ele atuou na linha de frente da Covid-19 e hoje estuda peixes peçonhentos no Butantan

Inspirado pelas palavras do pai, Felipe Justiniano superou desafios longe de casa e conquistou o sonho de trabalhar com biotecnologia


Publicado em: 08/01/2025

Reportagem: Aline Tavares
Fotos: José Felipe Batista

 

Em fevereiro de 2020, Felipe Justiniano Pinto estava no penúltimo ano da graduação em Biotecnologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), em Foz do Iguaçu (PR). Sempre em movimento e engajado em diversos projetos acadêmicos, ele tinha planos de fazer estágio no Instituto Butantan, mas tudo parou com a chegada da pandemia de Covid-19. Por conta das restrições sociais impostas, Felipe retornou para a casa dos pais, em São Paulo, mas o desejo de ajudar o levou de volta ao Paraná pouco tempo depois – agora para contribuir no diagnóstico da doença.

Com 23 anos na época, Felipe conseguiu uma vaga como estagiário no Hospital Municipal de Foz do Iguaçu, onde atuou durante cinco meses. A iniciativa veio da UNILA, com o objetivo de suprir a falta de mão de obra, e reuniu tanto alunos capacitados como os insumos necessários para os testes. Além de coletar e processar uma grande quantidade de amostras, que vinham das cidades da região, o estudante trabalhou no Plantão Coronavírus, tirando dúvidas da população por telefone e atuando como um canal de apoio aos cidadãos em um momento de incertezas. Para ele, foi um trabalho emocionalmente desafiador.

“Quando você está só fazendo testes com uma amostra, você não sabe a vida daquele paciente. É muito diferente quando começamos a conversar com as pessoas e ouvir suas histórias”



O menino dos porquês

Hoje, aos 27, Felipe acaba de ser aprovado no doutorado direto em Toxinologia do Instituto Butantan para estudar peixes peçonhentos. Apesar de ser um tema bem diferente do trabalho feito durante a pandemia, o objetivo segue o mesmo: dedicar-se à pesquisa na área da saúde. Esse interesse vem desde cedo: Felipe sempre foi uma criança curiosa, e fazia o pai se desdobrar para responder todas as suas perguntas. No Ensino Médio, decidiu cursar Biotecnologia, o que o levou a se mudar de Bauru (SP), sua cidade natal, para outro estado, aos 18 anos.

O primeiro ano da faculdade foi cheio de aprendizados. Encontrar um lugar para morar e fazer “coisas de adulto”, como pagar boletos, reconhecer firma em cartório e cozinhar foram alguns dos desafios, além de aprender a navegar no universo acadêmico por conta própria. A universidade tinha sido fundada há apenas seis anos, e a graduação em Biotecnologia era ainda mais recente – Felipe entrou na segunda turma.

“Nós acabamos ajudando a fundar o curso. Foi uma experiência que eu não trocaria por nada, porque me fez crescer muito, e o pontapé inicial para o que viria no futuro”, diz.

Paralelamente às provas e aos trabalhos da faculdade, Felipe se dedicava a trazer melhorias para o ambiente universitário, apoiando na criação do centro acadêmico de Biotecnologia e na abertura de uma empresa júnior para os alunos colocarem seus conhecimentos em prática, além de representar os estudantes no Colegiado do curso.

Em 2017, participou do Encontro Nacional dos Estudantes em Biotecnologia, promovido pela Liga Nacional dos Acadêmicos em Biotecnologia – o objetivo da organização é regularizar a profissão de biotecnologista no Brasil e promover a divulgação da área. Mais uma vez, ele encabeçou um novo projeto e criou um polo da Liga de Biotecnologia dentro da universidade. Graças a esse trabalho, Foz do Iguaçu receberá pela primeira vez o encontro nacional dos estudantes em 2025.

A divulgação da ciência feita na universidade foi outro pilar que o biotecnologista ajudou a construir. Junto aos colegas, ele criou o projeto “Biotec na Feirinha”: com um estande na feira que acontecia aos domingos na rua principal da cidade, os estudantes levavam o universo da biotecnologia para a população local, ensinando sobre DNA, fazendo experimentos e mostrando o potencial das pesquisas.

“Eu pensava: nós estamos fazendo tanto com tão pouco recurso e as pessoas precisam saber disso. Os jovens precisam saber que ser cientista é uma possibilidade no Brasil”



Mergulhando no mundo dos peixes

O primeiro contato de Felipe com laboratório ocorreu na graduação, durante um projeto de Iniciação Científica voltado para a área ambiental. Sob orientação da professora da UNILA Caroline Gonçalves, o jovem estudou a produção de biocombustíveis a partir de resíduos ambientais utilizando microrganismos. Foi quando teve certeza de que era na bancada que ele desejava estar.

Como muitos paulistas, Felipe cresceu ouvindo falar sobre o Butantan, os soros, as serpentes e as vacinas, e já tinha em mente a ideia de estagiar no Instituto quando começou a cursar Biotecnologia, embora nunca tivesse visitado a instituição. Para tornar isso possível para ele e outros alunos, o jovem, como representante da turma, propôs que a universidade formalizasse uma parceria com o Butantan em 2019. O plano era se candidatar a uma vaga de estágio no ano seguinte.

No entanto, a pandemia interferiu na rota. Sem estrutura na época para aderir às plataformas digitais, a universidade precisou suspender as aulas por alguns meses, e a conclusão do curso acabou atrasando. Em 2022, com o avanço da vacinação e a retomada gradual das atividades, o biotecnologista conseguiu, enfim, ingressar no tão sonhado programa de estágio.

O laboratório escolhido foi o de Toxinologia Aplicada, que investiga, principalmente, a composição de venenos de animais peçonhentos e sua potencial aplicação na saúde humana. A linha de estudo que chamou a atenção do jovem, conduzida pelas pesquisadoras Mônica Lopes Ferreira e Carla Lima, envolve proteínas extraídas do veneno do peixe niquim (Thalassophryne nattereri). Para estudar essas moléculas, as cientistas fazem testes com o zebrafish (Danio rerio), também conhecido como peixe paulistinha: um modelo que confere resultados rápidos e possui 70% de semelhança genética com humanos.

Imerso na natureza do Parque da Ciência, Felipe diz que o Butantan foi “amor à primeira vista”: ainda durante o estágio, já sabia que ali era o seu lugar. De última hora, decidiu mudar o tema de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que seria sobre biocombustíveis, para fazer uma revisão de estudos dos últimos 20 anos sobre peixes peçonhentos, alinhado ao conhecimento que vinha adquirindo. Apesar do desafio, o resultado foi um sucesso e o estudante recebeu nota 10 da banca avaliadora. 



 

Em 2023, Felipe engatou no mestrado, sob orientação da pesquisadora Carla Lima, para estudar uma família de proteínas presentes no veneno do niquim, as naterinas. Elas foram descobertas pelo grupo e existem em outras 331 espécies de diferentes reinos, de fungos a aves, incluindo peixes não peçonhentos como o zebrafish. “Se nas espécies peçonhentas, essa proteína é responsável pelos sintomas de envenenamento, qual é a sua função naquelas que não são peçonhentas? Essa é a pergunta que queremos responder”, explica.

A hipótese é que a molécula tenha um papel no sistema imune do peixe e, portanto, poderia ter uma ação importante nas respostas inflamatórias e em infecções. “O projeto ainda visa estudar a evolução da resposta imune, sendo a naterina uma molécula chave para responder a essas questões”, completa.

Felipe ressalta que suas experiências durante a graduação foram importantes para que fosse contemplado com uma bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no mestrado, o que possibilitou o desenvolvimento de seu projeto.

De lá para cá, o jovem cientista participou de diversas atividades do laboratório, incluindo um workshop sobre zebrafish em Santiago, no Chile – sua primeira viagem internacional, em que teve a oportunidade de apresentar resultados do projeto. Também foi coautor de uma pesquisa que mostra o potencial de uma toxina do niquim contra a asma. Em agosto de 2024, graças aos resultados positivos obtidos no mestrado, Felipe conseguiu avançar ao doutorado direto para dar continuidade às suas pesquisas.



 

“Corra, menino, corra”

Para Felipe, vestir o crachá do Butantan teve um significado além da conquista pessoal: foi uma vitória dedicada ao pai, com quem compartilhava esse sonho. Ele faleceu em setembro de 2021, poucos meses antes do jovem iniciar sua trajetória no Instituto, em consequência de um câncer no cérebro. Quando a família soube do diagnóstico, em abril daquele ano, Felipe colocou tudo em pausa para cuidar do pai, da mãe e do irmão mais novo.

“Acabei descobrindo uma força dentro de mim que nem imaginava que existia. Tive que ser o pilar da minha família”

Foram muitos obstáculos a serem superados, da insegurança de frequentar o hospital em plena pandemia ao medo de dirigir. Felipe usava aplicativos de transporte para levar o pai aos tratamentos, mas nem sempre os motoristas eram compreensivos: ele havia perdido os movimentos das pernas após duas cirurgias e precisava de cadeira de rodas.Para oferecer mais conforto ao familiar, o jovem decidiu assumir o volante e fazer algumas aulas com a prima para ganhar confiança.

Alguns meses após perder o pai, Felipe soube da reabertura do programa de estágio do Butantan, que aconteceria em 2022. Era difícil retomar a vida acadêmica em meio ao luto, mas ele encontrou inspiração em palavras que ouvia desde pequeno. “Meu pai sempre dizia: ‘tudo se realizará’. Quando saí de casa, ele me enviou uma música chamada ‘Run Boy, Run’, ou ‘Corra, menino, corra’, que fala de um jovem que corre atrás dos seus objetivos de se tornar um grande homem. Eu conversava com meu pai sobre meu objetivo de entrar no Butantan, então decidi fazer isso não só por mim, mas por ele”, conta.


Acervo pessoal


Hoje, seu maior fã é o irmão caçula, que conta para todos os amigos sobre o irmão cientista e participa, junto com a mãe, das atividades para o público promovidas pelo laboratório. Felipe mantém contato com os amigos de faculdade, com quem adora conversar sobre as pesquisas que cada um está fazendo, e curte ir ao karaokê e ao cinema no tempo livre.

Em meio aos experimentos com o zebrafish, à contemplação do parque no horário de almoço, às atividades de divulgação científica promovidas pela equipe e, mais recentemente, à conquista do doutorado direto, Felipe se mostra empolgado com o futuro. Seu desejo é continuar promovendo o fortalecimento e a divulgação da ciência brasileira e inspirar outros jovens a seguirem esse caminho.

“Agradeço especialmente as minhas orientadoras, Dra. Carla e Dra. Mônica, com quem aprendo todos os dias para me tornar cada vez mais o cientista que quero ser no futuro. Trabalhar para que a ciência seja mais valorizada e mais acessível para as pessoas e ajudar a responder novas perguntas é o que me move”